O homem é um lobo para o homem, pensava Thomas Hobbes, e o homem é um lobo para o lobo, confirma Thomas Cailley. Quase dez anos depois de Les Combattants , que electrizou a Quinzaine des Cinéastes com o seu ardor juvenil, o realizador regressa a Cannes 2023 com Le Règne Animal, a sua segunda longa-metragem, que abre a seleção Un Certain Regard com brio.
Peludos, emplumados, escamosos, passaram-se dois anos desde que surgiram as primeiras mutações dehumanos para animais. Sem pretender explicar cientificamente os porquês, o filme mede a temperatura de uma sociedade obrigada a adaptar-se a uma nova realidade e a conviver com estas"bestas" - é sabido que nunca é bom ser (demasiado) diferente.
François (Romain Duris e o seu eterno ar de babacool) e o filho Emile (Paul Kircher, visto no ano passado em Honoré) partem em busca da mãe da família, que está em plena metamorfose, com a ajuda de Julia (Adèle Exarchopoulos, que confirma definitivamente o grande sentido cómico do seu desempenho excêntrico). Um acidente de comboio dispersa as"criaturas" na natureza, que são enviadas para um centro especializado na região de Landes - que nunca se pareceu tanto com um bayou do Louisiana, místico e envolvente ao mesmo tempo, sobretudo quando chegam soldados tão aterradores como os homens do governo na casa de E.T.
Verdadeiro filme de género, do tipo que o cinema francês produz muito pouco - pelo menos, de forma decente -, Le Règle Animal destaca-se não só pelo seu humor e excentricidade, mas também pelas cenas de arrepiar os cabelos e os dentes da transformação física destas "bestas". O filme é também um delicado filme de aprendizagem da adolescência, como uma fera que lambe as feridas do passado (o lento desaparecimento da mãe) e olha para o futuro. Na idade do primeiro amor e do desejo irreprimível de liberdade, Thomas Cailley dobra o discurso ao ritmo das modificações corporais destes meio-humanos, meio-animais que conservam o seu tamanho humano enquanto adquirem progressivamente atributos animais. É preciso esperar dias que parecem anos para saber se se vai ser comido por um crocodilo ou um gorila, uma cobra ou uma coruja.
Este é um segundo filme brilhante e bem trabalhado, uma proposta formal ousada que poderia muito bem beneficiar de uma sequela. A última cena, como uma cena pós-genérica da Marvel, parece deixar a porta aberta a outros "monstros" num futuro não muito distante. Por isso, se, por acaso, o quarto do seu filho adolescente começar a cheirar a animais selvagens, faça a si próprio as perguntas certas.
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